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A liberdade e o destino imperioso de Rosinha de Valença
Data de Publicação: 1 de janeiro de 2018 10:59:00
Por Sérgio Gustavo*
Era apenas mais uma visita. Apenas não, era mais uma esperada visita de Rosinha de Valença ao Brasil. Outra temporada para rever familiares, amigos e lugares, reexperimentar a convivência com os seus em seu país, e preencher novamente os espaços vagos e ávidos pelo som inconfundível do seu violão. Foi, no entanto, a última temporada em que Rosinha viveu da forma que escolheu: livre. Em abril de 1992, a violonista, compositora e cantora, que saiu do Vale do Café na década de 1960 e levou para o mundo o nome de sua cidade, sofreu lesão cerebral após uma parada cardiorrespiratória que a deixou em silêncio absoluto até a morte. Doze anos em coma, sem poder manejar o instrumento que dominava como poucos. Certa vez, Martinho da Vila afirmou: “Nunca houve na nossa música uma mulher que tocasse um violão tão vigoroso”.
Diva liberta
“O pior inimigo de uma mulher é a sua abnegação”, afirmou a escritora norte-americana Betty Friedan (1921-2006). Rosinha de Valença, que iniciou carreira em plena revolução feminina, jamais renunciou aos seus desejos para o cumprimento de qualquer padrão cultural. “Acredito que se me casasse e tivesse um filho, deixaria de tocar violão, e a falha não seria exclusivamente minha, mas sim, da estrutura que vivemos”, disse a artista.
E Maria Rosa Canellas, que nasceu em 1941, era curiosa e dona das suas vontades desde a infância, quando dava de ombros ao preconceito e se metia entre os meninos para jogar futebol, diversão que a acompanhou pela vida. “Assisti algumas partidas dela, já adulta, no sítio em Taboas”, revelou Andreia Canellas, sobrinha da artista. “Ela também gostava muito de pescar. Chegava a Valença e ia direto pra usina”, disse o afilhado de Rosinha, Pedro Canellas. O local foi inspiração para a canção Usina de Prata, sucesso na voz de Maria Bethânia.
Ainda criança, fascinada com os ensaios da banda do irmão Roberto, começou a estudar violão. Jamais freqüentou aulas oficiais, mas teve como mestre o valenciano Fio da Mulata, seu tio e instrumentista relevante na Época de Ouro do Rádio. Aos 12 anos, Rosinha já acompanhava calouros na Rádio Clube de Valença e se apresentava em bailes da região.
Após concluir o colegial, a jovem decidiu dedicar-se somente à música, mudando-se para o Rio de Janeiro em 1963. Em entrevista ao Jornal do Brasil, em 1972, Rosinha falou sobre o preconceito: “Eu era uma mulher que precisava de sorte, porque era a única contra um número enorme de violonistas, um bando de homens que não estava a fim de me ceder lugar. Quantas vezes fazia acordes fortíssimos para acordar as pessoas, para que calassem um pouco a boca e prestassem atenção: quando um artista toca ele tem que ser ouvido, não importa que esteja de saia ou de cuecas”.
Certa vez, o músico Antonio Alvim deu detalhes sobre o início da carreira da amiga Rosinha. “De família modesta, tornava-se imperioso transformar o violão em meio de vida”, disse o baterista, que acionou contatos para conseguir uma oportunidade para ela. Na primeira chance, na Rádio Nacional, foi elogiada por seu improviso, mas não conseguiu o sonhado contrato. Meses depois, Roberto Menescal, grande nome da Bossa Nova, convidou Rosinha para apresentar-se em evento que aconteceria em um dos endereços mais luxuosos da capital.
A presença da desconhecida em uma festa que tinha até Tom Jobim entre os convidados despertou a curiosidade. “Com vocês, Rosinha, uma menina de Valença que toca muito bem”, anunciou Baden Powell. “Só que a menina entrou totalmente segura, com um tremendo ‘swing’”, lembrou Alvim. Naquela noite, Rosinha foi contratada por Flávio Ramos, dono da casa noturna Au Bon Gourmet. No dia seguinte, Sérgio Porto, famoso pelo heterônimo Stanislaw Ponte Preta, repercutiu o sucesso em sua coluna no jornal, uma das mais lidas do Rio de Janeiro. “Escolhi nesse dia o seu nome de Rosinha de Valença, porque achei que ela toca por uma cidade inteira”, contou o jornalista, que morreu em 1968.
Em 1971, Rosinha retornou ao Brasil para produzir discos de Martinho da Vila. Após dez anos com o sambista, teve encontros profissionais com outros grandes, como Nana Caymmi, Ney Matogrosso e Paulinho da Viola. Em 1988, a valenciana optou por viver em Paris, visitando o Brasil com frequência. “Vinha ver a família e relaxar”, disse Andreia, que, junto do irmão, também acompanhou a tia em inúmeras apresentações. “Ela não desejava ter filhos; adorava ser tia”, afirmou a sobrinha, que revelou, ainda, que Rosinha jamais escondeu suas namoradas da família: “Sempre trazia pra gente conhecer. Um tempo com muito mais preconceito, mas fomos criados com essa educação em que todo amor vale a pena.”
Destino imperioso
Apesar da carreira vitoriosa, Rosinha não amealhou dinheiro suficiente para bancar sua longa internação. Para colaborar nas despesas do tratamento, Bethânia reuniu amigos famosos e produziu um espetáculo em homenagem a ela, em 1994. Dez anos depois, por ocasião da morte da amiga, a irmã de Caetano Veloso resolveu produzir um disco tributo. Com seu selo Quitanda, parte da Biscoito Fino, lançou Namorando a Rosa (ainda comercializado no site da gravadora), com faixas interpretadas por artistas renomados. Bethânia e Alcione, que também participou do disco, foram citadas pelo sobrinho de Rosinha como as celebridades que jamais deixaram de se preocupar com sua tia. No mesmo ano, em seu espetáculo Brasileirinho, Bethânia chamou Miúcha para um dueto em homenagem à amiga no Canecão.“Sou muito grata à Rosinha. Foi a primeira pessoa a me convidar pra uma turnê no Brasil”, lembrou a irmã de Chico Buarque.
Antes do coma, Rosinha já havia sido homenageada pela cidade onde nasceu. Em 1987, foi fundado o Teatro Municipal Rosinha de Valença. “Os poucos artistas que vieram, disseram que não existia teatro, a acústica era péssima. Prometeram que viraria um teatro de verdade, mas até hoje, nada”, disse Pedro.
Após anos de abandono, o local voltou a ser reformado recentemente. Orçada em pouco mais de R$ 1 milhão, a obra é de responsabilidade da prefeitura com recursos do governo do Estado do Rio de Janeiro. Consultada pela Revista Vale do Café, a Secretaria de Estado do Ambiente (SEA) não divulgou o atual estágio da revitalização e informou que “não é possível, no momento, prever o fim das obras”.
Rosinha nos deixou há mais de 13 anos, mas sua personalidade e modo de viver representam a mulher contemporânea, que pode estar ao lado ou na frente, mas jamais atrás de um homem. Uma mulher dona do seu corpo e do seu destino. É bem verdade que o destino é sempre um desconhecido. No caso de Rosinha, calou sua voz, reteve seus movimentos e impediu que todos fossem beneficiados com a longevidade da sua produção artística. O legado adormecido aguarda a devida valorização.
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