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Flor de ir embora

Data de Publicação: 25 de dezembro de 2018 15:36:00

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Por Sergio Gustavo Lopes*

    Há quase um século e meio, uma misteriosa flor brota anualmente em Vassouras e atrai curiosos. Popularmente conhecida como Flor de Carne, ela desabrochou pela primeira em 1875, ano da morte de Antônio Rodrigues de Paiva e Rios, então vigário na Paróquia da cidade há cinco anos. Conhecido como Monsenhor Rios, ele deixou uma carta pedindo que seu corpo fosse enterrado em cova rasa e sem caixão. Em novembro daquele ano, dez meses após o falecimento do pároco, uma flor diferente de todas brotou na cabeceira de seu túmulo, no Cemitério da Irmandade Nossa Senhora da Conceição.


FLOR DE SENTIMENTO
    Entre os interessados no enigma, figuram o escritor Afonso Romano de Sant’Anna e o violonista Turíbio Santos. A visita da dupla à flor aconteceu em 2011 e rendeu uma crônica de Afonso. “Os mais fatalistas dizem que ela brota exatamente em 2 de novembro, dia dos mortos. O fato é que ela aflora na sepultura do Monsenhor Rios (...) Tem cheiro, não se sabe se de carne de escravos ou do Monsenhor. Da vida morta, de morte viva?”, escreveu ele.  A história oral registra especial atenção do pároco com as pessoas escravizadas. Seria ele o responsável por conseguir sepulturas dignas para aqueles que não tinham direito nem mesmo a covas rasas. 
    Próximo ao túmulo, há uma série de placas de agradecimento a graças atribuídas por fiéis ao Monsenhor Rios. Em minha primeira visita ao cemitério, em 2 de novembro de 2018, não encontrei a flor desabrochada, mas conheci algumas pessoas agradecidas por supostos milagres  “Pedi pela minha saúde em 1997 e fui atendida”, contou Marília dos Santos, que mora no Espírito Santo e visita Vassouras todo feriado de finados para agradecer ao Monsenhor diante de seu túmulo. 
    Desde aquele distante 1875, não houve um único mês de novembro em que a Flor de Carne deixasse de surgir. “Dizem que trouxeram botânicos de todo o mundo para estudá-la. Todos se perguntam: por que nasce só ali, naquela sepultura?; por que nasce e renasce ali há mais de cem anos? Seria a alma de escravos brotando do solo, agradecidas ao Monsenhor?”, questionou Afonso. 
    Entre tantas perguntas retóricas sobre a Flor de Carne, há uma que a ciência responde, a partir de estudos sobre uma flor similar, originária da Indonésia, a Amorphophallus titanum. A asiática tem o apelido flor-cadáver, pela mesma razão que a vassourense: seu forte odor de carne putrefata. Segundo artigo publicado na revista científica Plant Biology, o cheiro vem do aquecimento natural da coluna central (spadix) da flor.  “A temperatura da superfície chega a mais de 36 ° C, em comparação com a temperatura ambiente de 27 ° C. Ondas do odor parecido com a carniça são sincronizadas com esses pulsos de calor”, relata o trabalho. “Várias funções foram propostas para esta atividade energicamente cara: a atração de polinizadores, a estimulação de sua dispersão e a provisão de energia térmica para larvas ou adultos, enquanto eles estão envolvidos nas estruturas reprodutivas das plantas”, explica outra pesquisa, publicada na revista acadêmica Plant, Cell & Environment.  
    Há, no entanto, diferenças entre a flor-cadáver e a flor de carne. Enquanto a primeira chega a medir 3 metros de altura, a segunda tem algo em torno de 35 centímetros. Além do tamanho, há outra desigualdade fundamental entre elas: a asiática vive no máximo 40 anos e floresce apenas três vezes; a vassourense aflora em todo mês de novembro há mais de 140 anos. 


ROMPE A TERRA, DECIDIDA
    Em 2018, a Flor de Carne só veio a brotar no dia 19 de novembro e me lembrou um coração. Visitei novamente o cemitério para enfim conhecê-la e não senti o odor de carne. Segundo trabalho publicado no Turkish Journal of Botany, o cheiro pútrido “aumenta gradualmente da tarde até a meia-noite e depois diminui quando chega a manhã” - estive diante da Flor de Carne por volta das 16h. Anderson, funcionário do cemitério, garantiu que ela exala "cheiro de carne estragada” quando o sol está forte – na ocasião da minha visita, chovia e o tempo era ameno. Resta esperar até novembro próximo para rever a flor misteriosa e, quem sabe, comprovar o seu perfume exótico, seja ele de fé ou de dor. 

    O título e os subtítulos da reportagem foram retirados da canção Flor de ir embora, de Fátima Guedes.

 


FONTES
O mistério da Flor de Carne, crônica de Affonso Romano de Sant'Anna, publicada nos jornais Estado de Minas e Correio Braziliense em 27/11/2011. 
Uma tocha na floresta tropical: termogênese do Titan Arum (Amorphophallus titanum), artigo de Nadja Korotkova, Wilhelm Barthlott, Jörg Szarzynski, Paul LG Vlek e Wolfram Lobin, publicado na revista Plant Biology em agosto de 2009.
Processos respiratórios termogênicos em cones de Macrozamia cycad, artigo de Irene Terry, David T. Booth, Robert B. Roemer e Chris Moore, publicado na revista Plant, Cell & Environment em fevereiro de 2016.


Imagem da Galeria Flor de Carne no dia 19 de novembro de 2018
Imagem da Galeria Flor de Carne no dia 02 de novembro de 2018
Imagem da Galeria Foto do túmulo do Monsenhor Rios com placas de graças alcançadas no Cemitério NS da Conceição
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