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Memórias nos trilhos da estrada de ferro

Memórias nos trilhos da estrada de ferro

Data de Publicação: 1 de janeiro de 2018 11:01:00 Estreia em março documentário que mostra a ligação histórica de Barra do Piraí e sua gente com a ferrovia

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Por João Henrique Barbosa*

    Barra do Piraí foi o primeiro município brasileiro criado após a proclamação da República. Surgiu meses depois da queda da Monarquia, herdando territórios de Valença, Piraí e Vassouras, municípios de grande importância durante o período cafeeiro no Vale do Paraíba. A fundação do novo município marca uma guinada na história política e econômica da região: sem o café, transferido em grande medida para o Oeste paulista, o desenvolvimento se dá pelos trilhos da ferrovia, que chegara ao vale justamente para escoar a produção do “ouro verde”. Na nova geografia econômica da região, Barra do Piraí tinha posição estratégica. E não demoraria para se tornar o município mais progressista naquele final de século XIX, início de século XX na região. 
    Em março, quando completar 118 anos de fundação, Barra do Piraí vai ganhar de presente uma reflexão em forma de tela grande Não por acaso, está prevista para esse mês a estreia do documentário Entroncamentos, vida e memória nas estações de trem do sul fluminense. O longa-metragem, produzido pela Quiprocó Filmes tem roteiro assinado por Gabriel Barbosa, barrense que cresceu ouvindo a expressão “maior entroncamento ferroviário da América Latina”. “Sempre ouvi essa frase. Minha família sempre teve grande ligação com a ferrovia. Meu bisavô foi chefe da estação de Ipiranga. Meus avós, comerciantes que sempre atuaram ao longo da linha férrea”, explica.  
    No Rio, onde reside desde que começou a graduação em Ciências Sociais na UFRJ – hoje é também mestre em Antropologia pela UFF, Gabriel conheceu Fernando Sousa, formado em Ciências Sociais pela Uenf e mestrando na Uerj. Entre um intervalo e outro nas atividades no Instituto Pereira Passos, o organismo da prefeitura carioca responsável pelo planejamento urbano da capital fluminense, começava a nascer a Quiprocó Filmes.  “Falei com o Fernando, que mais tarde se tornaria meu sócio na produtora, sobre a ideia de fazer um filme sobre a ferrovia. Ele se interessou e em 2015 fizemos uma visita de reconhecimento a Barra do Piraí. Acontecia uma manifestação pela volta do Trem Barrinha.  Ali tivemos a certeza de que era uma história muito bonita a ser contada. O argumento do filme começou a ser feito a partir da ideia de que o ‘maior entroncamento ferroviário da América Latina’ passou a ser um grande “entroncamento de memórias”, pois as ruínas das estações abandonadas contavam histórias. Ou melhor, as pessoas que construíram suas vidas ali reviviam esses lugares através das suas lembranças. Relações de trabalho, família, relações quase umbilicais com lugares que hoje estão em ruínas. Resumindo: as memórias dessas pessoas dão vida a esses lugares aparentemente degradados”. (Nota da redação: Trem Barrinha é o modo carinhoso como os moradores da região chamavam o trem de passageiros que ligava Barra do Piraí a Japeri, na Baixada Fluminense, desativado na década de 1990).
    Segundo Gabriel, que divide a direção de Entroncamentos com Fernando Sousa, o documentário estreia em Barra do Piraí e, na sequência, deve passear pela região, inclusive indo a escolas interessadas em debater o assunto. “Queremos chamar a atenção para esses fatores nessa data festiva. Queremos trazer novos olhares sobre a região a partir desse filme. A construção de uma autoimagem sempre depende da forma que contamos as nossas próprias histórias. Não temos a pretensão de “descobrir” quem somos, mas talvez contribuir com mais uma narrativa sobre o que é o Vale do Paraíba. Para tentar entender um pouco mais quem somos, é preciso incomodar um pouquinho também, tocando em temas sempre escanteados”.  
    No documentário, Gabriel explora questões ligadas à formação do Vale que ainda suscitam paixões no século XXI. “Nós exploraremos algumas dimensões que são discutidas em poucos espaços da academia, como a dimensão da população negra escravizada do Vale. Na construção da ferrovia era proibido o trabalho escravo. Então, não havia trabalho escravo contratado diretamente pela empresa construtora, mas existia o aluguel trabalho escravo através de intermediários. A ferrovia era apontada como integrante de um processo de ‘modernização’, mas a coisa não funcionou bem assim.     Nosso ‘progresso’ se baseou em um modo de produção escravista, de exploração cafeeira baseada no trabalho escravo. Ainda que escamoteado, houve trabalho escravo na construção da ferrovia O Vale do Paraíba sempre é lembrado por ser o ‘Vale dos Barões’, mas na verdade foi o “Vale do trabalho escravo em larga escala. E isso tem suas consequências até os dias de hoje”. 
    Entroncamentos foi viabilizado a partir de um financiamento coletivo pela internet. As gravações aconteceram em setembro e envolveram pessoas que tiveram a vida ligada intimamente à ferrovia, nas estações de Ipiranga, Barra do Piraí, Santana da Barra e a oficina de locomotivas no Carvão. Em 2017, a Quiprocó produziu também Nosso Sagrado, documentário que investiga a história do acervo religioso afro-brasileiro aprisionado no Museu da Polícia Civil do Rio de Janeiro desde o início do século passado. Através de entrevistas com parlamentares, historiadores, lideranças religiosas, Nosso Sagrado expõe as raízes do racismo brasileiro. Em 2018, além de Entroncamentos, outro documentário sairá do forno. Em Nossos Mortos Têm Voz, a Quiprocó põe na tela o grito de mães e familiares de vítimas da violência de Estado na Baixada Fluminense.       

 



 

Imagem da Galeria A estação ferroviária de Barra do Piraí: a mais importante da região no tempo em que a vida trafegava nos trilhos da Estrada de Ferro Central do Brasil
Imagem da Galeria Fernando Sousa, de boné, e Gabriel Barbosa assinam a direção do documentário, viabilizado a partir de um financiamento coletivo on line
Imagem da Galeria A equipe em ação em Ipiranga, município de Vassouras: o trem presente na memória afetiva dos moradores
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