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Dossiê do Patrimônio Cultural: JONGO

Data de Publicação: 1 de outubro de 2016 11:12:00 O jongo nosso que não pode morrer

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Por Luísa Avelino


    Foi na região sudeste, especificamente nos estados do Rio de Janeiro, Espírito Santo, São Paulo e Minas Gerais, que a mais antiga manifestação brasileira de matriz africana teve origem. O jongo, também chamado de caxambu, era praticado entre os escravos trabalhadores das culturas de cana e café no século XIX, sendo a representação da resistência e articulação de um povo, que apesar de todas as adversidades, nos deixa como legado uma expressão rica em valores, significados e história.
    “Pai” da capoeira e “avô” do samba, o jongo é uma manifestação artístico-cultural que envolve música, canto e dança. A base percussiva dos tambores estabelece o ritmo, que pode ser cantado por um ou mais solistas. Os demais componentes respondem ao refrão em coro enquanto posicionam-se em círculo, em torno da fogueira, revezando-se em duplas até o centro da roda, onde acontece a dança.
    Hoje realizado de forma lúdica, no século XIX, entre os escravos, o jongo era um momento único em prol de algo que tinha muito significado para o grupo: representava união, reverência aos ancestrais, religiosidade e comunicação. Sua prática envolvia segredos partilhados por familiares e troca de desafios, que eram feitos uns aos outros
através das canções; tudo isso narrado simbolicamente, só compreensível aos que faziam parte do núcleo.

 

Jongo no Vale do Café


    Na região Vale do Café, são cinco municípios onde verifica-se a existência de comunidades jongueiras: Arrozal, distrito de Piraí; Barra do Piraí; Pinheiral; São José da Serra, distrito de Valença e Vassouras. Segundo pesquisadores, entre 1795 e 1850, a maioria dos africanos trazidos para o sudeste eram de origem bantu, vindos da África Central, área que possuía a raiz linguística bantu e algumas semelhanças culturais entre si.
    As fazendas do Vale foram cenário para o rufar dos tambores, o entoar dos cânticos e o balanço vibrante dos corpos, que apesar de cansados após o trabalho do dia, guardavam energias para aquela roda, uma espécie de catarse coletiva. “ O jongo era o momento em que se podia cultuar a religião sem que o sinhozinho soubesse. Minha mãe foi criada em uma fazenda e me dizia que ali se fazia uma grande roda de jongo, se cultuava a religião e mandavam mensagem um para o outro. A parte da cantiga era pergunta e resposta, toda por código. Eles ficavam mandando mensagem, dando as notícias de cada lugar e o sinhozinho não entendia”, conta Claudia Mamede, líder da Associação Afro Descendente Caxambu Renascer, de Vassouras.
    Cláudia, filha de jongueiros, só descobriu o envolvimento dos pais com a manifestação ancestral após pesquisa iniciada por seu irmão Luís Carlos dos Santos, o Cacalo, que tinha como objetivo aprender o jongo para seu resgate. “O jongo estava dentro da família mas na verdade a gente não sabia, nem imaginava que meu avô tinha sido um grande jongueiro. Como o jongo teve restrições na época, era visto como coisa do mal e chegou a ser proibido, minha mãe não nos passou, deixou isso fechado. A gente via, eu lembro muito bem, ela cantando músicas que eu não conhecia e meu pai às vezes, enquanto estava sentado, começava a bater em algo que estivesse perto, como se fosse um tambor, mas para isso nós passava desapercebido. Depois fui saber que era jongo que eles estavam cantando baixinho.”.
    O jongo enfrentou períodos de repressão, sendo associado a práticas de feitiçaria e à marginalidade. A continuidade do movimento significa para seus membros a exaltação à
superação e persistência, não apenas da manifestação, mas do povo negro, responsável por mantê-la viva. O movimento é visto como uma forma de afirmação de sua própria identidade, que os mantém conectados aos seus antepassados e tradições. Isso faz todo sentido quando se pensa que a história ensinada e passada nas escolas, que tomam conta do senso comum, tem a ótica do colonizador; é a visão europeia, suas crenças e valores que dominam nossa cultura. O povo que foi trazido à força ao Brasil e massacrado, até hoje sente os resquícios do passado tortuoso, seja pelos preconceitos ainda existentes ou pela herança de pouco acesso a bens e informação. A preservação do jongo é importante para a auto-estima do povo negro, mestiço, ou seja, a maior parte dos brasileiros, que tem direito de reconhecer-se através de suas raízes.

    Barra do Piraí é uma das comunidades onde procura-se manter a tradição, que hoje é perpetuada através de três grupos locais, representados pela Associação Cultural Sementes D’África. “Em Barra do Piraí nós procuramos manter a raiz do jongo. Alguns querem modificar, dançar diferente, usar outros instrumentos, mas nós queremos manter a raiz que é a nossa. Eu gosto de fazer o que eu aprendi com meus mestres, como seu Durvalino, tia Teresa, tia Marina e tio Jutinha. Queremos passar exatamente assim para os jovens, para manter a tradição, que nem nos ensinaram.” Relata o Sr. Cosme Medeiros, mestre do grupo ao lado tia Eva, consagrada matriarca, e dirigente da Associação de Barra do Piraí. 

 
Uma herança que passa de geração em geração


    Assim como muitas tradições populares, o jongo é transmitido de geração em geração, sendo de extrema importância o contato dos mais novos com os mais velhos, para que mantenham a autenticidade dos conceitos e os significados dos rituais. Há uma relação de grande respeito aos de mais idade, justamente por serem eles que eles guardam todo o saber, além de fazer parte da própria tradição africana o culto aos ancestrais. “Quando a gente começa a roda de jongo tem um ritual, primeiro é o salve aos mais velhos, que tem um canto específico, de reverência aos ancestrais. Depois saudamos a cultura do jongo, a África, a luta dos africanos, a luta dos escravos, as conquista, e aí chega um momento que a gente começa a falar dos outros.” conta Alessandro Uelson, componente da Associação de Barra do Piraí. 

    Assim, os próprios jongueiros são responsáveis pela continuidade da manifestação, motivo pelo qual muitas comunidades jongueiras foram extintas ao longo dos anos, vítimas de perseguição religiosa, mudanças nas condições de vida ou pela perda de um mestre influente. O município de Vassouras passa por um período de transição, após perder seu mais emblemático líder, Cacalo, em novembro de 2015, que dirigia a Associação Caxambu Renascer. Cláudia, sua irmã, desde então tem como responsabilidade manter viva a chama do jongo no município e para isso conta com o apoio da comunidade jongueira e do Pontão de Cultura, implementado a partir do registro do jongo como Patrimônio Cultural.

 

Tombamento como instrumento para salvaguarda e preservação

    O “Jongo do Sudeste” foi registrado como Patrimônio Cultural Brasileiro em 2005 pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), tendo como principal objetivo seu reconhecimento como bem imaterial nacional e sua salvaguarda, ou seja, preservação. Por afinidades já existentes a UFF (Universidade Sul Fluminense) foi escolhida, através de programa de extensão, para projetar e conduzir seu projeto de salvaguarda, trabalho iniciado em 2008. Além das comunidades do Vale do Café como Arrozal (Piraí), Barra do Piraí, Pinheiral, Quilombo São José da Serra (Valença) e Vassouras, o Pontão de Cultura também inclui as comunidades de Angra dos Reis (RJ), Campinas (SP), Carangola (MG) Guaratinguetá (SP), Miracema (RJ), Piquete (SP), Porciúncula (RJ), Serrinha (Madureira, Rio de Janeiro), Santo Antônio de Pádua (RJ), São José dos Campos (SP) e São Mateus (ES).
    Para os jongueiros que sempre vivenciaram um patrimônio familiar, receber um título do Estado e passar a compor a lista de bens culturais que identificam o Brasil, é um fator novo que vai, de alguma forma, influenciar na permanente construção de identidade dos grupos em questão. Os grupos tornam-se mais articulados, comunicam-se entre si e tem perfeita noção do que é importante para manutenção das suas atividades. As opiniões a respeito da atuação do Pontão de Cultura, inclusive, são controversas. Algumas comunidades consideram o apoio disponibilizado satisfatório, enquanto outras apontam para a precariedade do funcionamento das políticas.
    Cláudia Mamede, da Associação de Vassouras, vê com bons olhos as ações pós registro. “O reconhecimento foi a melhor coisa que podia ter acontecido, porque até então uma roda de jongo era algo sem importância, como se fosse um pagodinho na praça. Agora mudou porque deu nome, foi valorizado.”, comenta ela. “A importância foi essa, as pessoas começaram a conhecer a cultura e assimilar os negros com algo que vai além da escravidão.”.
    Componentes da Associação de Barra do Piraí requisitam apoio aos mestres que não possuem renda e que são o verdadeiro coração da manifestação: “A certificação do jongo como patrimônio nos ajudou a nos formalizar como associação, então nesse ponto foi produtivo. Mas em termos de melhorias ainda falta muito, porque muitos componentes não
trabalham, como é o caso do pessoal mais antigo, que são vários. Nós não recebemos um ajuda contínua, então é bem difícil manter o trabalho.”, comenta Sr. Cosme. “Está descrito na certidão de nascimento da própria cultura que é uma prática dos antigos, dos mais velhos, e a gente sabe que as pessoas precisam de uma atenção. Os mestres estão falecendo, estão indo, claro, faz parte da vida, mas se não se faz um trabalho de maneira intensa enquanto eles estão aqui, quando eles se forem vai se tornar superficial, essas crenças irão se perder.”, declara Alessandro Uelson, representante da nova geração dos jongueiros de Barra do Piraí.
    No século XIX o jongo era vetado a crianças e jovens, hoje, porém, sua inserção no movimento é ferramenta essencial para manutenção da cultura, porém com embasamento:
“Os mais novos, muitas vezes para atender as emergências de um edital, vão fazendo de outro jeito. E aí você abre mão de um conhecimento tradicional, que caracteriza sua prática
e a modifica para se encaixar em um edital, para se sustentar. E assim tudo vai se perdendo, e é isso que está acontecendo.”, comenta Alessandro.
     A continuidade de um bem cultural não depende de sua titulação, assim como o registro em si também não garante sua manutenção. A base do jongo é a transmissão do conhecimento entre seus componentes, inseridos em uma sociedade que inevitavelmente sofre modificações ao longo do tempo, sendo inclusive sua adaptação às mudanças um dos itens essenciais à sua permanência. O jongo já sofreu inúmeras modificações desde sua criação, adaptando-se à adversidades e transformação das culturas. De manifestação
praticada no isolamento dos terreiros de café, no século XXI o jongo ganhou o palco, popularizando-se primeiramente através do Jongo da Serrinha e do Mestre Darcy e beneficiando-se do mercado cultural atual.
    A essência de seu pensamento, no entanto, é algo que deve ser celebrado e mantido. A beleza do movimento são os ensinamentos que norteiam a tradição: união para
resistência contra opressões e transformação da sociedade em um lugar mais justo. E isso sim nunca pode morrer.

 


Contato com o Jongo no Vale do Café


Associação Cultural Sementes D'África (Barra do Piraí)
Tel: (24) 99243-0620 - Contato: Mestre Cosme Medeiros
Facebook: Associação Cultural Sementes Dáfrica


Associação Afro Caxambu Renascer de Vassouras (Vassouras)
Tel: (24) 99269-8212 - Contato: Claudia Mamede
Facebook: Jongo Caxambu Renascer

Centro de Referência de Estudos Afro do Sul Fluminense - CREASF (Pinheiral)
Tel.: (24) 9221 7212 - Contato: Maria de Fátima (Fatinha)
Facebook: Jongo de Pinheiral

Jongo do Quilombo São José da Serra (Valença)
Tel.: (24) 9903 0438 - Contato: Antonio do Nascimento Fernandes (Toninho Canecão )
Facebook: Amigos do Quilombo São José da Serra

Jongo da Cachoeira do Arrozal (Piraí)
Tel.: (24) 92342748 / 92342743 - Contato: Edgard Camillo
Facebook: Jongueiros da Cachoeira - Jongo de Arrozal

 

Fontes utilizadas: Trabalhos retirados de www.pontaojongo.uff.br; entrevistas feitas com
componentes das associações.

Imagem da Galeria Foto de Isabela Kassow - Diadorim Ideias
Imagem da Galeria Roda de Jongo
Imagem da Galeria Jongo de Barra do Piraí
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