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Desvendando o Vale do Paraíba, do Café... e do Escravo

Desvendando o Vale do Paraíba, do Café... e do Escravo

Data de Publicação: 1 de abril de 2016 11:14:00 Seção Resenha

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            Já há algum tempo, o historiador Ricardo Salles se debruça sobre o Vale do Café com um olhar atencioso e acurado. Doutor em história pela Universidade Federal Fluminense (UFF) com uma tese premiada sobre o abolicionista Joaquim Nabuco, ele é professor na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e pesquisador entre outras áreas da história política do Império do Brasil, do Vale do Paraíba, e da Escravidão no século XIX. É autor de trabalhos fundamentais à compreensão da História do Brasil como Guerra do Paraguai: Escravidão e cidadania na formação do Exército (Paz e Terra, 1990),  O Império do Brasil no contexto do século XIX (Almanack, 2012), Nostalgia Imperial. Escravidão e formação da identidade nacional no Brasil do Segundo Reinado, (Ponteio, 2013) e o sólido e impecável E o Vale era o escravo. Vassouras, século XIX: senhores e escravos no Coração do Império. (Civilização Brasileira, 2008).
            Ricardo coordena agora junto com Mariana Muaze, também professora da UNIRIO, a compilação O Vale do Paraíba e o império do Brasil nos quadros da segunda escravidão (7Letras), que integra trabalhos dos componentes do grupo de pesquisa intitulado "O Vale do Paraíba e a Segunda Escravidão" onde se estuda a política do império brasileiro, sociedade escravista e economia cafeeira. Um time de primeira foi escalado para fazer parte da coletânea. São contribuições de especialistas na Escravidão, no Vale do Café e no segundo reinado brasileiro. O trabalho conta com o apoio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).
            Ricardo gentilmente conversou com a REVISTA VALE DO CAFÉ e falou não só sobre o livro, mas de seu trabalho como historiador de um modo geral. 

REVISTA VALE DO CAFÉ: o que foi a Segunda Escravidão?

RICARDO SALLES: Bem sinteticamente, a ideia de uma segunda escravidão foi formulada pelo historiador norte-americano Dale Tomich. É fato conhecido que, na virada dos séculos XVIII para o XIX, a escravidão colonial na América estava sendo contestada pelo movimento abolicionista internacional e mesmo abolida, por revolução dos próprios escravos, como no Haiti, ou por medidas tomadas a partir das elites dirigentes dos Estados nacionais americanos, normalmente respondendo a ou temendo pressões dos próprios escravos. Nesse contexto, tem sido um lugar comum historiográfico salientar a incompatibilidade entre a escravidão negra e africana, instituição dos tempos coloniais, e os "novos tempos", marcados pelo advento do capitalismo em escala internacional, liberalismo e formação dos novos Estados nacionais. Ocorre que, no Sul dos Estados Unidos, no Brasil e em Cuba, que permaneceu como uma colônia espanhola, ainda que em novas bases, a escravidão não só não foi abolida como se desenvolveu em uma escala e com uma força nunca experimentadas anteriormente. Ou seja, nesses espaços, o mesmo momento que assistiu a abolição da escravidão colonial assistiu também a reorganização de uma segunda escravidão. Uma escravidão que se alimentou exatamente do desenvolvimento do capitalismo, do liberalismo e do processo de formação dos Estados nacionais. A segunda escravidão não foi somente uma herança colonial e, muito menos, uma herança que "teimou" em resistir à modernização; ela foi o esteio da modernização nos Estados Unidos, Brasil e Cuba.

REVISTA VALE DO CAFÉ: Como era o Brasil deste recorte?

RICARDO SALLES: As especificidades brasileiras são várias. Aqui, como coloquei em meu livro E o Vale era o escravo, a escravidão foi uma instituição integramente nacional: não só a região cafeeira do Vale, ou os polos açucareiros e algodoeiros desenvolveram a escravidão oitocentista, todas regiões e atividades, em menor escala, é verdade, mantiveram-se, pelo menos até a década de 1860, escravistas. Em Cuba, a escravidão foi dependente da manutenção do regime colonial; nos Estados Unidos, ainda tenha sido, até a década de 1850, a principal força econômica e política da nação, a escravidão restringiu-se aos estados do Sul. No Brasil, Estado nacional, e isso quer dizer monarquia, império (esta a segunda especificidade) estava em simbiose com a escravidão. Não haveria unidade nacional, monarquia, Dom Pedro II, etc. sem escravidão. Ou colocando de uma maneira mais precisa: ninguém sabe se poderia haver ou não tudo isso sem escravidão. O fato é que foi assim e não devemos, por rigor historiográfico e também por opção moral, esquecer disso por um só instante! As narrativas que, intencionalmente ou não silenciam sobre essa conexão umbilical - entre escravidão e Império, e por tabela, nação - são parciais.

REVISTA VALE DO CAFÉ: O que o Vale do Paraíba (Vale do Café) representou neste contexto?

RICARDO SALLES: "O Brasil - em outras versões, o Império - é o café, e o café é o Vale". Esse era um dito do século XIX. Cerca da metade das exportações brasileiras, que eram a principal fonte de riqueza nacional, dependiam do café. E esse café vinha da região que o geógrafo Orlando Valverde, na década de 1960, chamou de Bacia do Paraíba do Sul (o atual estado do Rio de Janeiro, o Vale do Paraíba paulista, a Zona da Mata mineira e o Sul do Espírito Santo). Até fins da década de 1860, pelo menos 80% desse café era proveniente do Vale do Paraíba. Entre 1840 e 1880, a classe dos grandes proprietários escravistas do Vale se constituiu na classe dominante do Império. Eles eram o segmento social mais rico, que possuía o maior número de títulos de nobreza, que era socialmente o mais prestigiado do Império. Exerciam imenso poder em suas localidades e controlavam a política de suas províncias, principalmente o Rio de Janeiro. Ainda que poucos tenham desempenhado funções no poder central, exerciam de fato, através de casamentos, alianças familiares e outras formas de influência, o poder. Nada disso teria acontecido sem a escravidão e sem os escravos. É esse "esquecimento" que a historiografia e os os brasileiros, nem por um momento, podem ter. Entre 1560 e 1850, quatro milhões de africanos escravizados foram trazidos para o Brasil (40% de todos os escravos africanos desembarcados para a América). Um milhão e meio desses escravos chegaram ao Brasil entre 1790 e 1850. Por volta de 1820, para assinalar uma data em que a implantação e expansão do café pelo Vale eram uma realidade, a região Sudeste como um todo passou a atrair mais da metade do tráfico. Em 1831, por pressão inglesa, o tráfico internacional foi abolido. Entretanto, residualmente, ele continuou acontecendo como contrabando. Até 1835, quando por pressão do Vale, esse contrabando foi escancarado, com o beneplácito do governo imperial. Os quinze anos entre essa data e 1850, quando foi efetivamente abolido, mais uma vez por pressão inglesa, representaram o auge do tráfico. Pouco mais de 700 mil africanos escravizados - 18% do total de escravos trazidos para o Brasil nos 270 anos anteriores - desembarcaram nas praias brasileiras. Quase 80% deles, ou cerca de  560 mil, vieram para o Sudeste. O principal sorvedouro desse contingente de gente - arrancado de suas terras, trazidos a força e colocados para plantar e colher café numa região que 30 anos antes era coberta por uma floresta tropical - foi o Vale do Paraíba. Assim, o Império foi o café, o café foi o Vale e o Vale foi o escravo.
REVISTA VALE DO CAFÉ: Há quanto tempo existe o grupo de pesquisa? Como foi formado?

RICARDO SALLES: Formamos o grupo em setembro de 2010, em uma reunião em Vassouras. Estavam presentes historiadores do Rio, Vassouras, Valença, Niterói e São Paulo, pertencentes a diversas instituições de ensino e pesquisa, que estudavam o Vale.

REVISTA VALE DO CAFÉ: Qual a importância destes estudos para a historiografia e para a compreensão do Vale do Café?

RICARDO SALLES: Um ponto importante do grupo é que sempre quisemos escapar de "amarras" típicas de vida acadêmica de hoje. A principal delas é buscar integrar os estudos acadêmicos dos centros "mais consagrados", como a UFF, a USP e a UNIRIO, instituições públicas federais e estaduais, com os estudos de acadêmicos de instituições acadêmicas "menos consagradas", como a USS e a FAA, por exemplo. Mais importante, além de não reconhecermos essa falsa hierarquia de consagração acadêmica, achamos fundamental incorporar os estudos e estudiosos não acadêmicos, na sua maioria historiadores e pesquisas locais. Da mesma maneira, participam do grupo historiadores não acadêmicos, estudantes, bacharéis e licenciados, mestrandos, doutorandos, mestres e doutores. Romper essas barreiras, e ainda há muito que fazer nessa direção, é fundamental para voltar a trazer o Vale para o mapa da História do Brasil. 

REVISTA VALE DO CAFÉ: Por que a sua opção pela História?

RICARDO SALLES: Foi uma opção em duas etapas da minha vida. A primeira, no final da década de 1960, quando cursava o científico para me preparar para o vestibular de Medicina, optei por fazer o curso de História, que era um assunto que, cada vez mais, me encantava. Entrei no curso de História da PUC-Rio em 1971, mas não concluí. Me envolvi muito com política ao longo da década e, depois, a vida tomou outros rumos profissionais. Voltei para a História, como amador, no final dos anos 1980, quando acabei me dedicando a um estudo sobre a Guerra do Paraguai. A partir daí voltar para a vida acadêmica tornou-se um desejo cada vez mais forte, mas difícil de realizar devido às circunstâncias da vida profissional e pessoal. Só consegui em 1995 (a segunda e definitiva opção) e aqui estou.

REVISTA VALE DO CAFÉ: E por que a opção pelo Vale do Paraíba/Vale do Café?

RICARDO SALLES: Foi bem "por acaso". Depois da Guerra do Paraguai, realizei um estudo amplo sobre o Segundo Reinado e, já de volta à academia, escrevi uma tese de doutorado sobre Joaquim Nabuco. Fui contratado pela Fundação Rosemar Pimentel - FERP, de Volta Redonda, para desenvolver um projeto de pesquisa em História. Pensei na escravidão, um velho interesse, e o Vale do Café no século XIX. Fui me envolvendo cada vez mais.

REVISTA VALE DO CAFÉ: Qual o olhar do historiador sobre o Vale hoje?

RICARDO SALLES: A importância do Vale, do café, do que poderíamos chamar da "grande escravidão", dos grandes temas de história econômica e social esteve relegada a um segundo plano, nos últimos 30 anos, devido ao predomínio dos temas "micro" e do aporte antropológico e cultural na historiografia. É hora de equilibrar as coisas. Resgatar o Vale, o café, o Império, o tempo em que o Rio de Janeiro era o centro econômico da nação, etc. também tem uma função atual, do ponto de vista da memória e do turismo. E sem perder, nem por um momento, que tudo isso foi feito pelo braço e pela cultura negra e africana.


 
Título: O VALE DO PARAÍBA E O IMPÉRIO DO BRASIL NOS QUADROS DA SEGUNDA ESCRAVIDÃO
ISBN: 9788542103687
Editora: 7Letras
Encadernação: Brochura
Páginas: 576
Ano de edição: 2015
Edição: 1ª
Organizadores: Mariana Muaze, Ricardo Salles

Imagem da Galeria Capa do Livro "O Vale do Paraíba e o Império do Brasil - Nos Quadros da Segunda Escravidão"
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