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Fazenda Santa Cecília

Fazenda Santa Cecília

Data de Publicação: 1 de setembro de 2017 11:04:00 Antiga Nossa Senhora da Piedade de Vera Cruz

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Por Sebastião Deister*

 

    Tudo começou no ano da graça de 1770, quando o sesmeiro e minerador português Manoel de Azevedo Matos iniciou a construção de uma primeira moradia junto à margem direita do rio Santana (em terras do atual território de Miguel Pereira), área em que pretendia criar sua família ao lado da esposa Antônia Ribeiro do Pilar Werneck (com quem se casara na Igreja da Candelária em 16 de dezembro de 1733) e dos filhos Ana de Jesus (17.02.1738), Inácio de Souza Werneck (25.07.1742) e Manuel de Azevedo Ramos (29.04.1748). A partir daquele local, Manoel sonhava estender pelo vale do rio e pelas férteis colinas adjacentes suas plantações de cana, milho, feijão e mamona que então lhe pareciam ser a opção mais rentável de vida após a queda da extração de ouro em Minas Gerais. Escolhido um lugar seguro naquelas colinas ainda incultas, Manoel iniciou sua construção em um dos flancos mais acessíveis do chamado Morro da Viúva. Ao lado de Ana Jesus, Inácio e Manoel e da nora Francisca das Chagas Monteiro (esta já esperando o primeiro filho de Inácio), ele deu por aberto os trabalhos em um pequeno platô que lhe oferecia uma série de grandes comodidades, entre as quais a terra fértil e muito bem irrigada pelas águas do Santana e o acesso fácil a um trecho do Caminho Novo, pelo qual a família pretendia escoar a produção de sua futura fazenda tanto para Minas Gerais quanto para o Rio de Janeiro.

    Levantada entre 1770 e 1771, a primeira casa serviu à família pelo menos até o alvorecer de 1777, quando ele decidiu mudar-se para um ponto superior na margem esquerda do rio. Tal providência foi tomada pelo fato de a primeira moradia não mais acomodar todos os familiares, uma vez que em 1780 Inácio e sua esposa Francisca já criavam sete filhos. Por outro lado, Manoel acalentava a ideia de fundar na nova fazenda o primeiro estabelecimento de aguardente da região, aproveitando a febre de plantação de cana-de-açúcar que vinha estimulando a grande maioria dos fazendeiros da serra. O café, que anos depois seria a grande mola de progresso de todo o território circunscrito pelas encostas do Tinguá e pelas águas do Paraíba, era ainda uma cultura incipiente e mesmo vista com olhos desconfiados por grande parte dos agricultores do interior fluminense.

    A segunda moradia contrastou em tudo com a primeira, principalmente em função de sua inédita beleza e de suas notáveis dimensões. Bem mais protegida do que a primeira, a segunda vicenda da Piedade foi construída de frente para o vale do rio Santana, com sua fachada contemplando o oeste. Todavia, Manoel não pôde desfrutar de seu conforto por muito tempo, pois a morte o levou em 1778, alguns meses antes da comemoração de seus 90 anos. Assim, a propriedade passou às mãos de Inácio de Souza Werneck logo após a morte do pai. Dando continuidade aos pioneiros trabalhos de Manoel, Inácio dedicou-se à lavoura, mandando vir de Minas Gerais diversas famílias para auxiliá-lo nos serviços de campo e doando para elas algumas de suas glebas até então desocupadas.

    Após a morte de Francisca, ocorrida em 11 de outubro de 1811, Inácio voltou-se para a vida eclesiástica (que, na mocidade, abandonara para poder se casar), sendo ordenado padre em 1813. Cumpriu suas funções de Vigário de Vara por cerca de nove anos, pois veio a falecer na sua Piedade em 2 de julho de 1822, apenas vinte e três dias antes de completar 80 anos.  

    Sua filha Ana Matilde recebeu então a Piedade como herança. Casada com o português Francisco Peixoto de Lacerda, Ana procurou dar continuidade aos trabalhos de Inácio naquela florescente fazenda que, posteriormente, passaria às mãos do único filho do casal (Francisco Peixoto de Lacerda Werneck, titulado 2º barão de Paty do Alferes), que não apenas a exploraria comercialmente com imensas e rentáveis plantações de café, como ainda nela introduziria algumas modificações e ampliações estruturais, tornando-a definitivamente um marco fazendário de enorme peso social e econômico ao longo do rico período de produção cafeeira verificado no Segundo Reinado. De fato, a Piedade, com 600 braças (cerca de 1.320 metros) de testada e 1.800 braças (quase 4.000 metros) de fundos possuía terra suficiente para produzir café a partir de 160.000 pés racionalmente distribuídos por aquele fértil solo.

    Após a morte do barão de Paty em 22 de novembro de 1861, todo seu patrimônio passou para o filho Luiz Peixoto de Lacerda Werneck, acrescentando-se à Piedade outras propriedades, como o Sítio Barbacena e as fazendas Sant´Anna e Palmeiras. Ao receber tantas terras, o doutor Luiz precisou assimilar um forte impacto diante da realidade da cafeicultura escravista brasileira, até porque jamais participara diretamente de tais atividades rurais em face do tempo que passara estudando na Europa. De qualquer forma, buscou a orientação necessária para seu trabalho nas orientações escritas deixadas pelo pai, com isso pelo menos minimizando um pouco a dificuldade que sentiu ao assumir seus deveres na serra. Entretanto, apesar de seus esforços, a outrora produtiva Fazenda da Piedade não escapou do abraço asfixiante do declínio da produção cafeeira, e aos poucos as fecundas terras beijadas pelo rio Santana tornaram-se absolutamente inúteis e desencorajadoras. Com profunda amargura, a família Werneck viu espraiar-se cada vez mais pelas colinas o desnudamento dos terrenos e quedou-se impotente diante da erosão causada pelas chuvas tropicais e do assédio esfaimado das pragas que se multiplicavam pelo restante das plantações. A despeito de alguns negros mais fiéis tentarem, com as próprias mãos, eliminar os insetos implacáveis que se assenhoreavam de folhas carcomidas, de frutos envelhecidos e de brotos tímidos que surgiam aqui e ali em alguns pés de café mais teimosos, as colinas foram se desnudando, o café desaparecendo e as luzes da Piedade lentamente se apagando.

     Em 1867, após a anuência de sua esposa Isabel Augusta e cerca de um ano depois da morte de sua mãe, a baronesa de Paty, o Dr. Luiz Peixoto enfim decidiu-se pela venda da fazenda ao Dr. Joaquim Teixeira de Castro, o futuro visconde de Arcozelo, casado então com a Maria Isabel de Lacerda Werneck, irmã do Dr. Luiz. Livre do compromisso de administrar a fazenda, Luiz Peixoto partiu em definitivo para Lucarno, na Suíça, onde, a propósito, faleceu em 22 de julho de 1855 vitimado por um edema pulmonar.

    Joaquim Teixeira de Castro, médico português nascido na Freguesia de Arcozelo, na cidade do Porto, tratou logo de concluir algumas obras na Piedade iniciadas pelo sogro, o barão de Paty. Castro procurou melhorar o cafezal e até se arriscou a plantar novos espécimes em áreas que ele supunha ainda produtivas. Se bem trado e em solo propício, o café poderia dar frutos por quase meio século, mas isso se mostrou impossível por conta de plantios desordenados, da ausência de trabalhadores qualificados e das dificuldades de exportação da produção fazendária. A despeito dos problemas, o visconde dirigiu a Piedade por 24 anos, falecendo em 1 de maio de 1891 vitimado pela febre amarela.

    Após a morte do visconde, a fazenda foi entregue a seu filho, o major Luís Werneck Teixeira de Castro. Conhecedor das dificuldades da época, o major hipotecou a propriedade a seus primos, o coronel Joaquim Ribeiro de Avelar e sua esposa D. Mariana Albuquerque de Avelar (na ocasião, donos da Fazenda Pau Grande, em Avelar). O documento foi lavrado em 20 de junho de 1898, valendo Rs. 40:000$000 (quarenta contos de  réis). Não obstante suas ingentes tentativas de saldar a hipoteca, o major Luís Werneck Teixeira de Castro viu-se compelido a entregar a Piedade a seus credores, buscando assim saldar sua dívida. Por conseguinte, cinco anos depois da primeira hipoteca, ele entregou a propriedade aos primos através de escritura lavrada em 19 de fevereiro e reafirmada em 2 de abril de 1903. Nessa data, a imagem de Nossa Senhora da Piedade, mandada vir de Portugal por Manoel de Azevedo Matos em 1770, foi levada para a Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Paty do Alferes. Segundo consta, o major Luís condicionara a assinatura da escritura de transferência da Piedade para seus parentes à concordância desses em levar a Santa para onde seu tetravô Inácio, o Padre Werneck, encontrava-se sepultado.

    O coronel Joaquim Ribeiro de Avelar não demonstrou grande interesse em reativar a Piedade. Por consequência, apenas cinco meses depois de receberem a fazenda, ele e a esposa venderam-na por míseros 3 contos de réis para Francisco Santoro, com escritura passada na própria fazenda do Pau Grande pelo escrivão Lafayette Werneck Dantas.

    Francisco Santoro e sua mulher, D. Gema Storino Santoro, tentaram desenvolver na fazenda a plantação de cana e a fabricação de aguardente no abandonado alambique de cobre. Passaram ainda a criar gado leiteiro e de carro, além de outros pequenos animais, e os produtos de sua propriedade – como carne, verduras, legumes, leite, ovos e algumas frutas – eram comercializados na já concorrida feira livre de Paty do Alferes. Tudo, porém, conspirava contra seus planos: o cafezal, envelhecido e derrotado pelas pragas, já nada rendia; a pequena lavoura sofria com a terra exaurida, seu capital de giro ia se extinguindo e a distância que separava a fazenda da estação da estrada de ferro, pela qual eles poderiam escoar parte de sua produção, desanimava os sitiantes e onerava o preço final das mercadorias. Em vista de tantos reveses, cansados e desesperançados, Santoro e a esposa negociaram a fazenda com Paulo Florentino Lebre e sua mulher – D. Maria Amélia do Amaral Lebre – consumando-se o negócio no dia 23 de abril de 1918 em cartório do Rio de Janeiro. A partir de então, passou-se novamente a criar algum tipo de gado de leite na fazenda e deu-se início à lavoura de cana para a produção de aguardente, plantando-se também hortaliças e frutas destinadas basicamente ao consumo da família e dos seus empregados.

    Paulo Florentino Lebre morreu em 27 de junho de 1931, deixando as propriedades Piedade, Vera Cruz e Macuco para a viúva Maria Amélia e filhos. Os herdeiros, embora otimistas, logo se defrontaram com uma série de problemas praticamente incontornáveis: falta de mão-de-obra barata, qualificada e específica para uma fazenda, impostos cada dia mais pesados e insistentes exigências do Instituto do Açúcar e do Álcool sobre a fabricação de aguardente. Às voltas também com as enormes dívidas do inventário, os beneficiários concordaram em vender a terceira moradia para D. Charlotte Dublinau, incluindo no negócio a antiga senzala, o terreiro de café e o engenho, e conservando para a própria família apenas a primeira moradia, até hoje em mãos dos descendentes de Júlio Lebre.

    Em 1945, a grande fazenda ainda apresentava o corpo principal neoclássico concluído pelos proprietários que sucederam o barão de Paty e o visconde de Arcozelo. Seu pórtico central mostrava um arremate com um frontão triangular de tímpano liso, com quatro colunas na frente, de base quadrada e tijolo aparente, e duas de fachada, sustentando telhado de duas águas e formando o pórtico. Sua frontaria possuía quatorze janelas com pilastras de tijolo aparente separando-as de duas em duas. Atualmente, no entanto, essas colunas encontram-se recobertas e pintadas de branco, não existindo mais os antigos tijolos aparentes que tanta elegância e bom gosto conferiam à austera fachada da Piedade.

    Contudo, a decadência da fazenda mostrou-se irreversível. Sua nova proprietária, D. Charlotte Dublinau, nela promoveu algumas reformas consideradas “modernizantes”, introduzindo uma série de modificações internas no seu corpo principal, como a construção de banheiros nos antigos quartos e a divisão do velho salão de recepção em aposentos novos e menores. Na área externa, alterou-se a entrada com a retirada de duas colunas centrais do pórtico e a elevação de seu piso de acesso. Com isso, ela tentou instalar na Fazenda da Piedade o Hotel Guaíra, de breve e lamentável duração.

    D. Charlotte, de origem francesa, enfrentou na ocasião sérios atritos pessoais com seu sócio alemão, em função dos anos de guerra na Europa que antepunha em campos opostos seus países de origem. Tais desentendimentos foram parar na justiça, e enquanto esta não formalizava uma decisão, toda a terceira moradia ficou sob a proteção de um preposto da proprietária, cuja indiferença para com aquele patrimônio histórico relegou a Piedade a um total desamparo, a ponto de provocar a queda dos telhados e o desmoronamento das seculares paredes de taipa. O descalabro dessa absurda administração chegou ao cúmulo de permitir o desmonte do que restava da senzala e do engenho, cuja madeira dos telhados e das esquadrias de janelas e portas (confeccionadas havia mais de cento e vinte anos com o esmero típico dos escravos e com madeiras de lei como jacarandá e sucupira) chegou a ser utilizada pelos inúteis e ociosos empregados da fazenda como simples lenha de fogão. Anos depois, até mesmo parte do terreiro de café foi desmanchada e suas pedras empregadas para se construir o piso de uma pequena piscina na propriedade. O mais absurdo dessa atitude insólita e inconcebível é que Vera Cruz, graças ao rio Santana, sempre fora uma região abundante em pedras, mas, por comodismo e insensibilidade, tornou-se mais fácil destruir um piso centenário do que buscar material bruto às margens do rio. Em pouquíssimo tempo, os belos telhados das casas e suas paredes de taipa vieram abaixo, deixando pela Piedade um ar soturno de solidão, melancolia e saudade.

    Lavrada finalmente a sentença judicial, D. Charlotte vendeu a terceira moradia ao industrial Cecil Davis, que refez o telhado parcialmente esboroado e alterou um pouco a frontaria da fazenda com a retirada de duas pilastras existentes entre cada duas janelas. Recuperando ainda duas outras alas de características semelhantes ao corpo central, ele conseguiu conferir à Piedade um pouco do aspecto elegante que atualmente ostenta. Com a morte de Cecil Davis, assumiu a fazenda seu filho Cristiano, que a administrou por alguns anos. Posteriormente, o embaixador José Aparecido de Oliveira comprou a Piedade, e com um paciente trabalho de restauração e pintura, fez novamente brilhar nos seios das colinas de Vera Cruz a grande propriedade onde se gestou o embrião do município de Miguel Pereira.

    No século entrante, a família Lebre reivindicou na justiça o direito de exclusividade do título Nossa Senhora da Piedade para a sua moradia, alegando ter sido ela a primeira das construções erguidas em Vera Cruz. Por conseguinte, o embaixador José Aparecido de Oliveira viu-se obrigado a trocar a designação de sua propriedade, rebatizando-a então como Fazenda Santa Cecília, numa homenagem à filha Maria Cecília. Por outro lado, o notável arquiteto Oscar Niemeyer (grande amigo da família) ali deixou sua marca como presente para os 15 anos da jovem, erguendo nos gramados da propriedade uma singela capela dedicada a Santa Cecília.

        A fazenda, atualmente, abre para visitação programada e hospedagem. Localiza-se na Estrada Tigipió, 656, no logradouro de Vera Cruz. Os contatos podem ser feitos pelo telefone (24) 2484-8283.

 

 

 

Imagem da Galeria Fazenda Santa Cecília
Imagem da Galeria Fazenda Santa Cecília
Imagem da Galeria Capela projetada por Oscar Niemeyer
Imagem da Galeria Imagem de Santa Cecília, vinda de Portugal
Imagem da Galeria Máquina de Costura usada pelos escravizados
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